quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O fim do silêncio para um Homem ordinário.

Sua casa e seu refúgio, eram na verdade seu espanto.

Seis da tarde era a hora em que saía do trabalho, pontual como um relógio suiço, desses caros e fodidos. Um emprego comum pra um homem quase na sua meia-idade, em um banco, uma loja, um pequeno ou médio negócio de sua propriedade, um tribunal, uma farmácia, uma firma, empresa, fábrica ou agência de publicidade. Metade de um negócio, Ministro em uma igreja protestante qualquer, sociedades anônimas ou não, isso não importa. Seis horas é hora de pegar o tráfico de uma cidade grande genérica, com suas pontes, seus aquedutos horríveis e sua cortina de poluição sonora ou não, e ir pra casa, que pode ser uma pequena casa de subúrbio, um apartamento no centro, um puta casarão em um desses condomínios fechados ou uma cobertura de onde se pode desfrutar a melhor vista de uma cidade doentia, parcelada em prestações razoáveis e perto do maior shopping center da cidade, senhor.

Oito horas de trabalho, 3 horas de tráfico, contando manhã e noite. Comprou um puta carro, com um motor capaz de desatolar uma família de obesos mórbidos dentro de um jipe em uma poça de lama com apenas uma corda e um pé no acelerador. Ar condicionado, um puta som e bancos de couro, mais confortáveis do que aquela poltrona de seu psicanalista que via na hora do almoço de quarta e sexta, pontual como suas lágrimas e sua repressão, assim que ele saía daquele consultório. Um teto solar e um porta malas típico de um carro de mafiosos. Tudo isso pra andar a Dez Quilômetros por Hora em avenidas abarrotadas de gente. Caralho, quanta gente.

E apesar de tudo, esse Homem tem medo de chegar em casa, de uns dias pra cá. Sua rotina foi tomada por uma coisa que cuja paranormalidade o espanta. Antes seu psicanalista, melhor amigo e confidente fiel, O ouvia falar de problemas fora de casa, solidão, sua vida dedicada a um emprego medíocre e insatisfatório, seus anos dedicados a coisas que não fazem sentido nenhum hoje em dia, e a saudade, ah meu Deus a saudade, que coisa é a saudade dos velhos e bons tempos, gastos para chegar onde ele estava nesse exato momento. Aniversários que se foram, uma vida que se foi, tempo demais, demais. E nas últimas visitas na hora do almoço, esse homem só fala de vozes, vozes que começam a falar e falar toda vez que ele entra em casa.

Esse homem não aguenta mais. Aos poucos, percebe que as vozes sempre estiveram lá, mas ele não se importava. Uma voz que apareceu anos atrás, cujo tom era de uma familiaridade assustadora, e de uns anos pra cá, uma voz mais suave, que o acordava no meio da noite com gritos e choro, que o assustavam. Todas as noites, ele chegava de seu emprego em seu carrão e as vozes começavam. Falavam de coisas imcompreensíveis e absurdamente chatas, que ele não entendia, ou não queria ouvir.

Aos poucos as vozes tornaram-se tão insuportáveis, tão obssessivamente repetitivas em seus discursos e berros, que ele não queria mais chegar em casa depois das sete e meia. Todas as noites era a mesma coisa, as mesmas lamentações, o mesmo choro, as mesmas vozes. Depois das Seis da tarde, o Homem começou a frequentar lugares escuros e vazios. Lugares escusos e sujos, onde vendiam todo tipo de bebida alcóolica que se podia comprar com o dinheiro ganhado e suado, sangrado e inútil. Uma dose de whisky sem gelo, traga logo duas ou três em um copo só, por favor. Traga aquela garrafa de conhaque lá do fundo aquela ali mesmo, e traga rápido. Cachaça pra abrir o apetite, e ver se come alguma coisa, depois de tanto tempo sem comer. Quanto é mesmo que eu te devo? Sim, eu vou pra casa dirigindo, e você não tem nada a ver com isso. Até amanhã, ou não.

E assim ele chegava em casa mais tarde do que o habitual. As vozes começavam assim que ele entrava, mas agora eram embaralhadas e distantes. Ele caía na cama logo que possível, as vezes de gravata e sapato, e dormia rapidamente. As vozes não mais o acordavam no meio da noite, e assim foi por meses. Ele parou de ir visitar seu amigo das quartas e sextas na hora do almoço, não precisava mais. As vozes continuavam, como sempre, mas agora não eram mais a coisa mais importante de sua vida. Não importavam mais, porque haviam tornado-se um pano de fundo, como aqueles de uma peça de teatro, que está lá, mas você não percebe, por não ser importante.

Toda noite ele chegava em casa embriagado e dormia até a hora de acordar para ir ao emprego. A dor de cabeça era melhor do que entender aqueles gritos e súplicas, tão cheias de desespero e dor. Ele sabia que havia enlouquecido totalmente, talvez há anos atrás, mas não importava. Nada mais importava, as vozes eram só um sussurro que tentavam trazer à sua mente lembranças de algo muito importante. Mas nada mais importava.

E então, um dia, as vozes se foram. Sem mais nem menos, sem explicação, em uma segunda-feira, ou terça, ou quarta. Ele nem havia bebido naquele dia, o buraco em que enchia a cara estava fechado,e a preguiça de procurar outro lugar, todos os lugares sempre lotados, caralho, quanta gente. Algo lhe dizia que algo muito importante e trágico havia acontecido, mas o que seria? Ele não se lembrava, mas começou a se importar.

Uma semana se passou sem voz alguma. Ele parou de beber na rua, e passou a beber em casa. Não sabia se era possível, mas aquele silêncio o perturbava mais do que as vozes. Pouco a pouco ele se viu enlouquecendo com aquele silêncio absoluto no escuro de sua sala, no conforto frio de seu sofá. Numa Quarta-feira, na hora do almoço, esse Homem voltou ao consultório de seu velho amigo que fora trocado por um copo cheio de alguma coisa. Disse que o silêncio o incomodava, o destruía, o enlouquecia. Seu amigo não pôde lhe ajudar, é claro, nunca ninguém pode ajudar nos momentos de necessidade. A garrafa, pelo menos, está sempre lá. E pra ela o homem voltou. José Cuervo, Johnnie Walker, Jack Daniel's. Grants, Ballantines, Seleta. Sinceramente, tanto faz.

E foi ali, que ele achou o bilhete que foi a causa de seu suícidio. Rápido e limpo, um tiro na boca, achado poucas horas depois por um vizinho que havia escutado o tiro. Ele, por sua vez, não deixou nenhum bilhete. Estava cansado e bêbado demais pra isso.

Em seu funeral, um caixão de pinho, barato e simples demais. Poucas pessoas, seu amigo psicanalista estava lá. Assim como sua mulher, autora do bilhete que dizia que ela tinha ido embora, pois ele havia se tornado demais ausente e descuidado. Sua voz não dizia nada, assim como a de seu filho, que dormia em seus braços. Sem choros.

Como se nada houvesse acontecido.